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1| As principais instâncias da União Europeia, o Conselho e o Parlamento Europeu, designaram o ano de 2018 de Ano Europeu do Património Cultural. A Decisão (UE) n.º 2017/864 não é inocente, pois reflecte os tempos que se vivem no “velho continente”: “Os ideais, os princípios e os valores integrados no património cultural da Europa constituem uma fonte comum da memória, da compreensão, da identidade, do diálogo, da coesão e da criatividade para a Europa. O património cultural desempenha um papel importante na União Europeia e o preâmbulo do Tratado da União Europeia (TUE) estabelece que os seus signatários se inspiraram «no património cultural, religioso e humanista da Europa».
Esta é claramente uma opção política que tem diversos destinatários: internos e externos, e pode a meu ver ser vista como um convite ao federalismo. Não há nenhum federalismo possível que não tenha uma base cultural e patrimonial. No entanto, este ideal, e eu sou pró-federalismo, tem as suas falências se entendermos que a Europa é assimétrica, i.e., com culturas distintas e desde sempre em constante confronto. Por outro lado, é uma clara mensagem contra os atentados terroristas que o continente tem sido alvo, e cujos receptores “vivem cá dentro”! Porque, se é verdade que fruto do progresso e das ideias que por aqui fortificaram somos um continente laico, as referências ao «património cultural, religioso e humanista da Europa» não são inusitadas. O tempo passava e nós teimávamos em não reagir!
Com efeito este ano celebramos o património cultural europeu, o que quer dizer a nossa identidade, primeiramente como portugueses e, numa maior escala, enquanto europeus. Se a primeira é historicamente condicionada, a “identidade europeia futura” só existe enquanto acréscimo – ou como diríamos hoje – como “upgrade” das nossas identidades locais. E este “salto” só será possível quando os povos tiverem consciência de si mesmo – de se conhecerem a si mesmo”, e que, portanto, tenham memória. Sem memória não há património que resista!
2| Tradicionalmente, desde Roma Antiga”, o termo património confunde-se com o vocábulo latino “patrimonium” que, então, tinha quase exclusivamente uma interpretação jurídica, pois tinha o objectivo de regular os bens susceptíveis de serem legados por um cidadão a outro e a outros. Ora, tratava-se de uma visão limitada, e “fora da história”, de se entender uma realidade que os tempos tornaram evolutiva. Actualmente, o conceito de património não é algo de exclusivamente materialista. Hoje é corrente referir e defender a sua “imaterialidade” por muito que este exercício se tenha banalizado!
Durante muitos anos criticou-se a construção europeia por ter ignorado as suas bases: os cidadãos e as diversas culturas europeias. Para o filósofo Xavier Tilliette sem “um espírito europeu que, por enquanto, sopra quase sem se ouvir, é impensável uma política comum”. (1999; p.33). Muitas vezes, património é sinónimo de história. Ora, como é possível que exista paz neste continente, quando ele era visto como “sinónimo de morte”? E se traduzia, nas palavras de Paul Valéry, na “luta de morte da alma europeia”? É preciso recordar, neste contexto fúnebre, a genialidade de Dostoiévski, quando, em “Os Irmãos Karamazov”, põe Ivan a dizer: “Sei que me desloco para um cemitério, mas é o mais agradável de todos os cemitérios”!
A história europeia não é fácil, e assemelha-se mesmo a um disco riscado. Esta propensão para o horror está nos nossos genes. Foi precisamente isto que André Malraux disse, na Sorbonne, nos escombros da II Grande Guerra: “… de século para século o mesmo destino mortal vem constantemente dobrando os homens; todavia igualmente se século para século, nesse mesmo lugar que se chama Europa e só nesse lugar, esses homens dobrados pelo destino ergueram-se de novo, para incansavelmente avançarem pela noite dentro...”!
Ao fazermos este retracto do nosso continente, e por arrasto da nossa memória colectiva, estamos a falar em crise, já que “a consciência europeia é uma consciência em situação crítica (…). Falar da Europa é praticamente falar de crise e da urgência em invoca-la”!
Ao fazermos este retracto do nosso continente, e por arrasto da nossa memória colectiva, estamos a falar em crise, já que “a consciência europeia é uma consciência em situação crítica (…). Falar da Europa é praticamente falar de crise e da urgência em invoca-la”! Porém, nem todas as crises são por princípio más. Não somos chineses, porque se fossemos a situação até seria fácil de ser resolvida, porque esse vocábulo é composto por dois caracteres, em que um representa perigo e o outro representa oportunidade. Ou seja, não há nesta pertinente decisão um convite à crise, como representação de uma oportunidade para Europa voltar a ser grande?
E concluo citando George Duhamel, quando em 1930 escreveu: "tenho a certeza que a Europa será feita ou desfeita por grandes perigos. Não terá escolha, ou se revela ou morre"!