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Acabo de descobrir um texto inteligente. Luís Osório no Jornal Sol
(sublinho o mais importante)
Só entre nós
Um dia não são dias – é a primeira crónica do ano e com ela partilho consigo cada um dos meus desejos. Bem, não propriamente desejos.
No final do ano, troquei-os por pensamentos. Um pouco desproporcionado, sei-o bem. Mas arrisco na certeza de que a nossa relação se estreitou; afinal, escrevo-lhe quase todas as semanas vai para dois anos, tempo suficiente.
A avó que me resta, a bela Alice, contou-me várias vezes a história de Américo de Oliveira. Seu padrinho e uma espécie de pai adoptivo do meu bisavô, foi figura heróica da Instauração da República e um influente das ideias carbonárias. Américo, de quem Mário Soares também é afilhado, morava na Travessa dos Lóios, no bairro do Castelo, e um dia, depois de ter almoçado carapauzinhos com açorda, virou-se para a pequena Alice e confessou-lhe: «Hoje estou convencido de que nenhum ser humano em qualquer país do mundo comeu melhor do que eu, absolutamente nenhum».
Além da genuína satisfação gastronómica, Américo quis também dizer que os tempos difíceis nunca serão capazes de ferir o essencial. Bastará para isso que não o deixemos. Tenho pensado nisso… basicamente o mesmo que me contou Belmiro de Azevedo numa conversa já publicada – «a sandes que comia na minha difícil infância sabiam-me tão bem ou melhor do que as refeições que pude provar nos melhores restaurantes do mundo».
Um ensinamento para estes tempos. Independentemente da defesa de convicções e direitos – quando isso deixar de acontecer desaparece a democracia tal como a conhecemos – saibamos saborear o que temos com um paladar de príncipes. Se o fizermos certamente será mais difícil o paladar nos azedar.
Atrevo-me então aos desejos. Um a um e sem qualquer critério especial. Jurei a mim próprio não pensar em nomes ou situações concretas. Nem desejar. Só pensamentos para o novo ano. Doze. Do tamanho das passas dos desejos.
Saiu-me assim:
– Passageiros de uma montanha russa insistimos em ter medo – do passado, de fantasmas, de perder o emprego ou de não o arranjar, de perder quem temos ao lado ou de continuar com quem estamos ao lado. Porquê o medo se a viagem prosseguirá de qualquer modo?
– Desespera ver tanto ódio. Reconhecemo-lo à distância; por uma palavra, olhar, gesto, pelo que nos fazem sentir. Esgotam-nos a energia, sugam-nos como vampiros. Tenho pena por eles. Porque enquanto o meu abalo dura minutos de incredulidade, o seu desespero e mediocridade é eterno e deve pesar-lhes mais do que podem suportar.
– Nas épocas de cegueira e medo, as ideias atrapalham o que está escrito nos manuais de sobrevivência. Mas o mundo como o conhecemos está em perigo, a democracia enquanto sistema imperfeitamente perfeito pode tombar num sopro e as mezinhas dos líderes acentuam o desespero. Inventem-se novas palavras e soluções, convoquem-se os sábios que restam.
– Mais do que nunca ouvimos falar de doenças que agora parecem à distância de um sopro do destino. Um amigo sem esperança, os velórios mais frequentes, a antecipação do momento em que também deixaremos de ser o reflexo de um espelho. De todas as doenças sem cura só a do amor é tolerável – estamos condenados à sua necessidade e sofremos por ter sido algumas vezes tão breve em nós. É verdade: a única doença sem cura de que precisamos é a que tem tendência a ser passageira.
– Sempre houve os que mataram, violaram, esquartejaram e esconderam cadáveres em valas comuns – eis os monstros na sua insaciável fome de sangue e de si próprios. Existem também por tudo o que lhes damos em troca da sua barbárie. Quando os devíamos condenar ao esquecimento eterno, oferecemos primeiras páginas e um lugar na história. Ao contrário das vítimas, tão anónimas como antes, eles passam a existir. O inferno ganhou espaço.
– Escrever bem é tão inócuo como fazer contas de somar, transformar convicções em exercícios de retórica, usar técnicas de sedução que dispensam a esperança no outro e agredir os que nos rodeiam com filmes, músicas, beleza, coragem ou inteligência. Escrever bem é uma técnica que não distingue os que a dominam de um qualquer artífice de produtos em série. Num dia, que espero distante, gostaria de partir amparado por amigos e amor – se assim for saberei que consegui pensar bem.
– Não há maior perigo do que darmos como certo o que é uma mera quimera – gastamos uma vida a perseguir ideias absolutas e nessa procura, com a ansiedade de sermos escolhidos por Deus ou pelos homens, esbarramos com a desilusão. Na procura da liberdade acontece o mesmo e em duplicado. Geralmente distingo os escravos mais facilmente; encontro-os nos gritos com que proclamam a sua liberdade.
– Não sei bem o que dizer sobre o amor ou qualquer outro absoluto. Surgem palavras e definições, mas não resistem ao que cada uma das esquinas nos reserva em destino. Talvez toquemos o amor no preciso instante em que, ao ver alguém, o nosso coração dispara e acalma ao mesmo tempo. Nem um bocadinho a mais nem um bocadinho a menos. Sim, é aí.
– É insuportável ouvir os que se arrogam de uma suposta superioridade moral – na maior parte das vezes são os mesmos que, por entre as marés, têm vidas paralelas. Desconfio dos que carregam o mundo às costas; sempre no seu ar sofrido, angustiado e inquisitório dos outros, sobretudo se os outros parecerem felizes e leves. Posto isto, desabafo contraditório. Com tantas pessoas em desesperança, cada sorriso de um político é uma facada na democracia. É injusto? É. Mas há momentos em que não há leveza possível.
– Tudo o que desejamos depende em grande medida da qualidade do desejo dos outros. Quase tudo o que fazemos inclui assim a comparação: o que compramos, o que sentimos, o que amamos e até o que sofremos tem a medida das vidas que nos fazem tangente. É verdade que cada um de nós é um mundo, mas também é verdade que até para a felicidade precisamos dos olhares à volta – só assim percebemos se estamos a ir bem ou mostramos o quanto valemos a pena.
– Há quem distinga os homens por serem mais sensíveis, ternos e outras coisas que tais – conheci alguns que faziam questão de dizer às mesas mais femininas que não gostavam de futebol ou de conversas masculinas. Mesmo na forma como se distinguem parecem estar sempre a olhar para o lado à espera de aprovação. Muitas vezes perdem-se na floresta, encontram uma fera morta e trazem-na aos ombros para que todos saibam que a mataram. Não tenho orgulho na minha condição, aceito-a com humildade.
– Conversas intermináveis e circulares sobre Deus – começamos nas palavras sagradas, discutimos o apocalipse e a figura de Jesus, Maomé ou Buda. De todos os assuntos já ditos e reditos este é o único ao qual nada podemos acrescentar e no qual tudo parece estar por dizer. Já não o discuto. Sinto-o em mim, mas não sei o que é. Se o soubesse seria o que não sou. E Deus seria o que sinto que não é.
Doze passas. Doze pensamentos. Porque um dia não são dias.