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A beleza do perene nos desafios de Bento XVI
O lançamento de pontes entre a Fé a Razão tem sido umas das tarefas deste Papa.
"Fazei coisas belas, mas, sobretudo, tornai as vossas vidas lugares de Beleza." Se tivesse de destacar uma frase do discurso de Bento XVI no encontro com as gentes da cultura, por certo inscreveria esta no breviário das cogitações diárias num mundo fechado ao transcendente e que, paradoxalmente, por ele anseia de modo infinito.
Propagandeia-se que o Bom, o Belo e o Justo assumem foros de verdades de adesão, de escolhas irracionais feitas por mulheres e homens desalinhados com o tempo. O grande contributo do Santo Padre tem sido (re)lançar pontes entre a Fé e a Razão, ou melhor, regressar ao étimo kantiano transformador da racionalidade em instância crítica também da Fé. O que esta não aceita, porque a tal, a Razão, levanta um veto inelutável, de igual jeito "as razões" não podem receber, sejam elas espirituais sejam temporais.
A multiplicidade de instâncias críticas é miríade de pensamento que, per se, urge saudar. Todavia, como Jano, se as mesmas estiverem ao serviço "das coisas penúltimas", como assinalou o romano pontífice, essas "razões" constituirão vazio. Um supremo vazio hedonista e comprometido com o temporário, que, no mero acto da sua escrita, se esvaiu já por entre dedos desossados, qual ave multicolor que, desasada, definha e morre. Não que o prazer seja um mal, um pecado. Não que a mensagem das religiões do Livro não seja, fundamentalmente, amor. Mas o prazer só o é na dialogia, em "(com)prazer". Quem se compraz engrandece-se e, ainda que movido por um "egoísmo altruísta", pode aspirar às primícias do Belo.
O medo - essa constante da noite dos tempos, conselheiro sábio que impede o abismo e abutre cobarde - é o único obstáculo a uma cultura integral ao serviço da essência da pessoa. E cultura surpreende-se em trechos de Mozart, em linhas de Camões, em filmes de Fellini, no sorriso desdentado e gasto do pastor transmontano ou nos pregões das varinas nazarenas. É de uma cultura inclusiva e liberta de pseudo-intelectuais que se nutre a alma de um povo. Tudo o mais é postiço, gongórico e ostentador.
O apelo do Papa é, por rectas contas, um convite à simplicidade, um verdadeiro "acto de contrição" de um intelectual a braços com uma Igreja ferida e dormente, imersa num ambiente que, reclamando com inteira justiça a punição de abjectos crimes, amiúde erige em bode expiatório instituições e pessoas. Limitadas, contingentes e pecadoras pessoas. Os membros do clero, da dita sociedade civil; todos nós. A política do silêncio e do encobrimento não se reconhece na instância crítica racional que Bento XVI tanto cultiva. Se o afirmamos sem tibiezas, também nos erguemos de forma decidida contra generalizações apressadas.
A Igreja pecou, peca e pecará. Constância triste, dir-se-á. Por certo. Todavia, poucas são as instituições que, nos dias que nos tocou viver, mantêm capacidade de autocrítica e, espera--se, de regeneração. Inimigos do justo são todos quantos persistem em sublinhar a traço carregado o feio e por isso injusto, mas não reconhecem o esforço de construir. Que sejam punidos conforme as leis dos estados aqueles que, pervertendo o chamamento divino, cometeram delitos hediondos e profanadores do corpo místico.
Porém, não se olvide que os "lugares de beleza" a que nos incentiva o Papa só se alcançam com o exemplo, na tensão dialéctica entre o "presente" e a "tradição". Nessa torrente que, não repetindo nunca as mesmas pontes, jamais deixa de ser água.