William Shakespeare
“No teatro, a verdade esquiva-se sempre”
Harold Pinter, "Discurso de Aceitação do Prémio Nobel"
A arte de representar, diz Jeanne Moreau, “não é a realidade. É um acto de crueldade que o actor inflige a si mesmo. Essa crueldade tem a ver com a lucidez e isso é algo de muito terrível”. O filósofo italiano Aldo Gargani(1933 – 2009), em o “Texto do tempo[1]”, defende a tese que a representação, ou seja, de “estar na encenação de si mesmo", equivale a “ (…) sair de si de si próprio. Sair de si mesmo” e que tal é “o maior desejo dos homens”. Estas duas proposições, levam-me a concluir que a heteronomia, como uma teatralização de nós mesmos, numa negação da mimética clássica, i.e., a arte não imita a vida, pelo contrário, como em Oscar Wilde, mente, pois “deve rejeitar a sinceridade, a fidelidade e a exactidão, e optar pela mascar, pela mentira[2]”. Em suma deve fingir! O actor, o artista e o poeta são portanto fingidores! “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente /Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.”
A própria máscara, utensílio mágico e teatral tem essa função, é uma negação da realidade, um filtro entre a realidade e a aparência, como podemos entender neste poema de Álvaro de Campos: “Depus a máscara e vi-me ao espelho. — /Era a criança de há quantos anos. /Não tinha mudado nada.../ É essa a vantagem de saber tirar a máscara. /É-se sempre a criança, /O passado que foi /A criança. /Depus a máscara, e tornei a pô-la. /Assim é melhor, /Assim sem a máscara. E volto à personalidade como a um términos de linha.” A máscara e, por extensão, o conceito de heterónimo (heteros = diferente; + ónoma = nome) tem, portanto, a capacidade, de incitar à separação das águas, alimentando a dialéctica real / virtual. Esta dialéctica, emFernando Pessoa, foi bem captada por Octávio Paz, que no prefácio de “O Rosto e as Máscaras”, afirma que o sucesso do poeta português “ (...) está escrito no seu nome: Pessoa, quer dizer pessoa em português e vem de Persona, máscara dos actores romanos. Máscara, personagem de ficção, ninguém: Pessoa[3].”
Se desenharmos um plano do universo “pessoano”, recordando a sua biografia como a sua obra, chega-se facilmente à conclusão que ele multiplicando-se em heterónimos, i.e., atrás da máscara, ou escrevendo com o seu nome de baptismo, o Pessoa homónimo, criou o seu palco, com os seus “dramas de gentes”, dando razão a Gargani: “A maior paixão dos homens é exporem-se a si mesmos e entrarem na própria encenação. Independentemente do facto de a verdade residir na arte ou na poesia ou de as artes e a literatura serem os lugares eleitos de verdade, teremos não obstante de reconhecer que a maior paixão dos homens é exporem-se a si mesmos, encenarem-se a si próprios, encontrarem finalmente a própria encenação; teremos de reconhecer que esta paixão, paixão existencial, é uma paixão que os impele para a arte, a música, o cinema, que são (…) maneiras de exporem, de se divulgarem a si mesmos através de uma cena” E, concluindo, acrescenta: “Não é pela busca da verdade que os homens fazem tudo isto, não é pela busca da verdade que os homens preparam a própria encenação a fim de se tornarem actores da sua própria existência, e não obstante é quando entram na própria encenação que têm a sensação de estar na sua verdade; como actores, que saíram da pessoa que anteriormente eram, exprimem agora a sua verdade, embora não tenha sido a necessidade da verdade que os transformou em actores. Foi antes porque se transformaram em actores de si mesmos, em actores da própria vida, para fugirem ao problema da verdade que se tomara a obsessão da sua vida interior; e agora, como actores e como artistas da própria vida, manifestam na sua existência a sua própria verdade[4]”.
Através deste jogo de linguagem que Gargani bebe directamente na fonte, os contributos filosóficos de Ludwig Joseph Johann Wittgenstein (Viena, 1889 — Cambridge, 1951), arauto da lógica, da filosofia da linguagem e da filosofia da mente, são notórios. Mesmo que optasse pelo silêncio na ausência da razão: “Não é possível dizer ou buscar lógica sobre todas as coisas. Há coisas sobre as quais apenas se deve calar.” Linha de pensamento coincidente com a de Fernando Pessoa, que segue, quando “mascarado” de Bernardo Soares, escreveu que “a meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé, mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível[5]”.
A heteronomia e a representação reflectem a condição humana. Por exemplo, que desde os mais diversos criadores, passando pelo mundo do crime e os seus códigos de conduta, ao advento e confirmação da sociedade da comunicação e, por maioria de razão, da internet, está bem patente. A própria noção de cultura evolui-o radicalmente, já que “o novo papel da “técnica” que deixou de ser um simples instrumento racional, um “meio”, para afectar crescentemente a própria constituição da experiência contemporânea[6]”. E, no entanto, a lógica da cultura (por maioria de razão) na “era digital”, passou a ser “mais figural que simbólica”, funcionando essencialmente com o imaginário. Imaginário este que a “heteronomia digital”, bem patente nas mais diversas salas de conversação, blogues, redes sociais, etc., sob as mais diversas assinaturas ou alcunhas, pressupõe! Porém, este avanço tecnológico, com desejada redução do número dos “info-excluídos” e / ou “info-analfabetos” pressupõe mais justiça. Porque, como reflecte Paulo Serra, da Universidade da Beira Interior, em “Ética e o Rosto e as Máscaras informação: alguns paradoxos éticos da “sociedade da informação”: “Um dos pressupostos fundamentais que, de forma mais ou menos explícita, enforma os actuais discursos acerca das “virtudes” da “sociedade da informação” — bem como as políticas que decorrem de tais discursos — é o de que um homem melhor informado é, necessariamente, um homem moralmente melhor; e que, em consequência disso, uma sociedade de homens melhor informados é necessariamente uma sociedade mais justa[7]”.